sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Educação, a jornada essencial


Entrevista com Mário Sérgio Cortella

Um dos mais respeitados filósofos da atualidade, mestre e doutor em Educação, Cortella fala com exclusividade para Gestão de Pessoas em Revista. Professor do Departamento de Teologia e Ciências da Religião e da Pós-Graduação em Educação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ex-secretário municipal de Educação de São Paulo (1991/1992) e autor de obras fundamentais sobre o tema, Cortella discute a importância da educação na formação do ser humano e no acirrado mercado de trabalho.

Fonte: Gestão de Pessoas em Revista – Junho/2008

Gestão de Pessoas em Revista – De modo amplo e geral, o que é educação?

Mario Sergio Cortella – Somos seres que não nascemos prontos, portanto, temos de nos formar, criar o nosso ambiente de vida, o nosso habitat. A isso chamamos cultura, que é composta de bens materiais e ideais, isto é, coisas e idéias, o nosso mundo. Tudo que nele existe compõe um resultado na nossa ação, que é a cultura. Não se confunda a cultura como sendo exclusivamente aquilo que é ideal, as idéias. O mundo material também é parte do resultado da nossa ação. Como nós não nascemos prontos, é preciso transmitir e retransmitir, produzir e reproduzir o nosso meio. Ora, o nome do veículo que transporta aquilo que chamamos de cultura é a educação. Aliás, a origem da palavra diz tudo: educação vem do Latim educere, da junção do prefixo ex, que significa para fora, e ducere, conduzir. Ducere é o mesmo radical de palavras como duto, aqueduto, viaduto etc. Portanto, educar é conduzir uma coisa para dentro de outra, transportar. No fundo a educação é o que transporta alguém do mundo do não-conhecimento para o do conhecimento de algo.

GER – Em que âmbito se dá a educação corporativa?

Cortella – Na vida há dois tipos de educação: a vivencial, espontânea, empírica, explicitada na clássica frase “vivendo e aprendendo”, ou seja, a escola da vida; e a intencional, provocada, deliberada. A educação intencional é formal e se divide em dois blocos: formal escolar e formal não-escolar, que se dá por meio de instituições como a igreja, o sindicato, a mídia. Ora, a educação corporativa é uma forma de educação formal não-escolar. Evidentemente, é possível a alguém ter apenas a educação intencional. Neste aspecto, claro, o contrário é verdadeiro, isto é, alguém pode ter apenas a educação no sentido vivencial e não ter a formalização do processo.

GER – Para as pessoas que estão no mercado de trabalho, qual a importância da educação formal não-escolar?

Cortella – De forma alguma pode-se pensar em separar a educação formal, escolar ou não, da vivencial, isto é, da escola da vida. Elas são separadas apenas do ponto de vista da organização. Até algumas décadas atrás, a escola da vida e um pouco de educação formal eram suficientes para o mercado de trabalho. Exemplo concreto: ao falecer, meu pai era gerente de banco. Começou a trabalhar na década de 1940, tendo só a 4ª série do antigo primário. Ele entrou como contínuo e fez carreira sem nunca voltar para a escola. Hoje, isso é impossível. A mudança veloz dos processos produtivos, dos relacionamentos, das organizações exige da pessoa turbinar, permanentemente, a sua educação. Isso vem pela insuficiência da educação apenas vivencial, na medida em que aquilo que se vive no cotidiano é sempre deficitário em relação ao que é necessário para se poder atuar num mundo veloz e com uma tecnologia extremamente rápida.

GER – Como e por que isso aconteceu?

Cortella – A exigência da escolarização, assim como os níveis escolares, foi aumentando como pré-requisito no mundo do trabalho, inclusive artificialmente. Como há um número muito grande de escolarizados, você acaba tendo como pré-requisito o ensino médio em atividades para as quais o fundamental seria suficiente. Por quê? É uma maneira de diminuir o número de inscritos e, portanto, refinar mais a seleção. Contudo, é importante ressaltar que esta necessidade de “turbinamento” da educação formal não é uma demanda de todas as sociedades; ela é típica da sociedade ocidental capitalista. Há sociedades muito mais livres na organização e em que esta questão não é colocada. Por exemplo, há várias nações indígenas no Brasil que não exigem essa formalização. É só vivendo e aprendendo.

GER – Esta exigência cada vez maior da educação formal acaba, em alguma medida, comprometendo esta educação para vida? Ou seja, ela é supervalorizada, enquanto a vivência é levada menos em conta?

Cortella – Diria que sim, nas empresas menos inteligentes. As mais inteligentes, a meu ver, são aquelas que valorizam os conhecimentos tácito e explícito. O primeiro é aquele advindo da experiência do cotidiano, enquanto o explícito é assimilado dentro das formalizações. Uma empresa inteligente incorpora o vivencial dentro do intencional – inclusive porque o intencional corre o risco de ser artificializado. Por outro lado, o vivencial, por si, por não ser metódico, estruturado, fica mais lento e dispersivo. É preciso juntar as vantagens de ambos os conhecimentos. A educação no sentido vivencial é mais significativa, porque só se aprende aquilo que incorpora a experiência. Já a educação no sentido formal é mais organizada, mais competente e mais veloz, exatamente porque é mais metódica. Portanto, para se obter ganhos é preciso juntar as duas percepções. Aliás, foi isso que o Paulo Freire [respeitado mundialmente, o educador pernambucano, falecido em 1997, é um dos grandes nome da educação brasileira] fez nos anos 1950 e encantou o mundo. A metodologia freireana é toda apoiada na incorporação do universo vivencial das pessoas ao processo de escolarização.

GER – O senhor diria que a educação corporativa pode suprir falhas educacionais do indivíduo nos vários ambientes, como a família, a escola?

Cortella – Sem dúvida. Do ponto de vista da educação corporativa, isto é, aquela que é facilitada, deliberada pela empresa, pela organização, ela supri sim algumas lacunas de outras formas educacionais. Mas a educação corporativa também é suprida por elas. Não é uma ação unilateral; é um ambiente educativo de reciprocidade. Em outras palavras, muita coisa se aprende no mundo empresarial, da família, da mídia, e vice-versa. Tanto que várias empresas, hoje, levam as famílias para dentro da organização. A IBM tem em sua intranet um espaço só para a esposa, o marido ou os filhos dos seus colaboradores. Isso faz com que os familiares se sintam partícipes da vida do profissional, dentro da organização.

GER – Até porque, hoje, as pessoas estão mais envolvidas com o mundo do trabalho, certo?

Cortella – Exatamente. Elas passam mais tempo no trabalho do que com a família. Agora, a empresa que separa o ambiente extra-organização do interno está sendo tola. Eu não sou o “eu profissional”; sou uma pessoa que tem várias dimensões. Muitos dizem que não levam questões do trabalho para casa. Isso é uma tolice, não há como: você vai para casa e o trabalho vai também. O que se pode é fazer um esforço para que não se desenvolva uma obsessão pela qual o trabalho ocupa, invade e soterra todas as outras dimensões da vida: a familiar, a afetiva, a religiosa e assim por diante.

GER – Neste contexto, o que significa dizer que o gestor de equipe deve atuar como um líder, como um agregador de capacidades das pessoas com as quais trabalha? Isso é viável ou apenas um jargão do mundo corporativo?

Cortella – A liderança é atitude, não é cargo – há muitos chefes que não são líderes, e muitos líderes que não são chefe. O líder é aquele que é capaz de inspirar, motivar, animar e inserir as pessoas em um projeto. E por isso liderança é função, não cargo. Em meu livro mais recente [Qual É a Tua Obra? Inquietações Propositivas Sobre Ética, Liderança e Gestão, da Editora Vozes] trato exatamente das cinco competências essenciais na arte de liderar. Numa delas, observo que a inovação da obra exige que o líder, junto com a equipe, seja capaz de revitalizar as competências, os conhecimentos, as capacidades. Portanto, obriga a uma educação permanente, a uma educação continuada. Aquele líder que não fizer isso é colocado fora da estrada. Há 20 anos, quando alguém era ultrapassado, apenas ficava para trás; aí, ele acelerava e alcançava o outro. Hoje, ser ultrapassado significa ser jogado fora da estrada, porque a velocidade de quem passa é tamanha que voltar se torna um pouco mais complexo. Cabe ao líder não admitir, não favorecer que haja perda de vitalidade no local de trabalho. E a vitalidade se mantém quando alimentamos a nossa competência, o nosso espírito e capacidade de conhecimento.

GER – Além da inovação da obra, quais são as outras competências essenciais de um bom líder?

Cortella – Abrir a mente; elevar a equipe; recriar o espírito; e empreender o futuro. Porque não basta inovar a obra, é preciso que a equipe se sinta elevada. Não é líder aquele que é oportunista, isto é, que usa as pessoas para subir. Não é líder quem não abre a mente; é apenas alguém que envelhece algumas das suas idéias. Não é líder aquele que confunde seriedade com tristeza e que, portanto, é incapaz de recriar o espírito. Não é líder quem, em relação ao passado, ao invés de fincar raízes, finca uma âncora – porque a âncora imobiliza e a raiz alimenta. Então, é líder alguém que empreende o futuro a partir desta alimentação que o passado oferece.

GER – Como o senhor avalia a discussão sobre o fim do emprego formal, de uma nova relação das pessoas com o trabalho?

Cortella – Isso vem sendo anunciado com uma força maior há dez anos, mas ainda não se cumpriu e não parece assim tão próximo. Afinal de contas, especialmente com a presença da Índia e da China no circuito internacional, houve uma revalorização do posto de trabalho. Nós podemos até dizer que em algumas economias, o emprego continua em alta. O que houve em relação aos mais jovens, especialmente aqueles que lidam no mundo da tecnologia da informação, foi uma perda da lógica da fidelização. Este profissional em particular é quem considera que não tem de ficar muito tempo numa empresa – fica dois ou três anos e depois procura outro caminho. Mas é o próprio empregado que acha isso, invertendo uma lógica de décadas anteriores segundo a qual a fidelização ao trabalho era indicador de competência.

GER – O ambiente formal do trabalho também não cria vínculos sociais importantes?

Cortella – Claro. A própria idéia de ambiente é aquilo que envolve. Eu sou, como humano, um ser de relações. O filósofo espanhol Ortega y Gasset dizia: “O homem é o homem e a sua circunstância.” Ou seja, não somos seres isolados. Veja que curioso, ilha em italiano é isola. E ficar isolado é impossível. Portanto, como um ser de relações, o ambiente laboral cria uma teia de relacionamentos. Às vezes, as pessoas se dão melhor neste ambiente – em tese, inóspito, pouco receptivo – do que no familiar ou social. Alguns, inclusive, fazem algo muito estranho, mas compreensível, que é adiar o retorno para casa, porque no trabalho se sentem melhor, mais acolhidos, mais estruturados. Um ambiente laboral acolhedor faz com que as pessoas mantenham vínculos de lealdade muito mais fortes, porque têm reconhecimento. E esta não é uma questão apenas pecuniária, financeira; é também a valorização daquilo que se faz, do mérito, do elogio, da capacidade de encarar a autoria. A remuneração é uma parcela, mas não é a mais significativa. Se assim fosse, não haveria médicos em hospitais públicos, professores na escola pública, locais em que a remuneração é ridícula.

GER – É possível indicar um modelo ideal de educação para carreira profissional?

Cortella – Há duas dimensões: a primeira delas é a pragmática, isto é, a imediata, a utilitária, de curto prazo. Há coisas que eu preciso fazer para continuar no circuito. Por exemplo, dominar um ou dois idiomas, além do inglês, hoje quase um não-diferencial. Um MBA, que dá uma turbinada em conhecimentos imediatos, também é pragmático. Mas há necessidade também da segunda dimensão, que é de médio e longo prazos, que extrapolam o campo meramente técnico. Nela, visamos os meios que ampliam a sensibilidade, o repertório intelectual. São cursos de filosofia, de música, de literatura, de artes que permitem um espalhamento neuronal, portanto, um aumento da capacidade da mente. O próprio Einstein dizia que uma mente, após ser esticada, não volta nunca ao tamanho original. Então, o técnico é uma dimensão e o que aumenta o meu repertório de sensibilidades intelectuais, é outra. É preciso programar coisas que aumentem esta capacidade, porque isso leva a um crescimento não só da sensibilidade, mas da criatividade, da autonomia, da capacidade de relacionamentos.

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